O lugar como espaço de sentido
A subjetividade das coisas objetivas!
Por Cleverson Israel 17 min de leitura
Carlos Moreno criou o conceito de “cidade 15 minutos”. De acordo com este cientista, a cidade deveria ser multipolar, rompendo com a noção de concentrar todos os serviços num único bairro da cidade, o bairro Centro. Qualquer que fosse o bairro residencial do munícipe, ele deveria ter acesso a todos os serviços, dentro de um raio equivalente a 15 minutos de caminhada, no máximo. Talvez seja muito difícil, ou impossível mesmo, factibilizar essa proposta. Contudo, do ponto de vista conceitual, parece-me ser uma excelente referência diretiva. De fato, o geográfico junge-se ao existencial. Morar numa área nobre da cidade, ou na periferia, molda a maneira como enxergamos o mundo e a vida. Por isso, é papel do Estado urbanizar as áreas periféricas, integrando a este ambiente serviços públicos e assegurando infraestrutura. O Estatuto da Cidade, em seu artigo 17, cria o conceito de ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social. Esses espaços deveriam receber um viés especial, segundo o perfil da demanda. Recife, a capital de Pernambuco, incorporou este conceito aos seus documentos públicos, relativos a planejamento e urbanismo. Em Lisboa, capital de Portugal, a metrópole em razão da qual cá estamos, trabalha com o conceito de BIP – Bairro de Intervenção Prioritária, um símile ou homólogo da rubrica a pouco referida. As cidades podem ser compactas ou dispersas. Faço referência a estas duas categorias, porque são fatores que impactam o ideal de caminhabilidade. O jeito como a estrutura física das cidades é conjugada faz surgir a marginalidade, que é um conceito, acima de tudo, sociológico. Confesso que faço a experiência da marginalidade. Fisicamente, moro num ponto privilegiado da cidade, mas simbolicamente, sou um alijado. Não quero, não pretendo, afastar-me ou me livrar dela, da marginalidade. Ela é o ponto a partir do qual alimento e desenvolvo minha força de resistência. O pária fez de mim o intelectual que sou. Ser um excluído social é um elemento constituinte da minha identidade, caráter e personalidade. É na zona de fronteira, na zona limítrofe, na borda, que mora a tensão. Tensão social, psicológica, cultural, identitária. Vejo-me forjado neste perímetro, no mundo da transição. Não moro nem no ser e nem no nada, mas no vir-a-ser, no devir. Como observa Karl Marx, “não é a consciência do homem que determina seu ser, mas é o seu ser social que determina a sua consciência”. A maneira como penso reflete a maneira como vivo (ou sobrevivo). Por conseguinte, se o meu lugar no mundo é o ponto de tangência, o mesmo ocorrerá no campo pensamental. E ocorreu! Da filosofia passo à sociologia, da teologia à ciência da religião, da psicologia à antropologia, da economia à literatura, da história ao direito, da pedagogia à comunicação social, e por aí afora. Não se trata, pois, de dizer que as áreas privilegiadas da cidade produzem conforto e sentido, e que as áreas remotas e mal servidas são destituídas ou carentes de sentido. A cidade é integrada por diferentes e numerosos lugares, e cada um destes lugares produz um sentido diferente. A pluralidade de existências produz pluralidade de percepções e mundividências. Assim como existe um movimento dos indivíduos centrais de repúdio aos indivíduos periféricos, paralelamente o mesmo ocorre no âmbito da noosfera. Os indivíduos periféricos produzem pensares e teorias que colocam em xeque a visão central de mundo, e, por tal razão, essa ação discursiva, essa ação comunicativa, sofre dificuldade de se fazer ouvir e ser aceita. Não se discute mais arquitetura e urbanismo, planejamento, trânsito e transporte, sem se considerar classe social, fatores como gênero, raça, orientação sexual, hipossuficiência econômica. Conceitos que antes só apareciam em sociologia ou psicologia, estão sendo recepcionados por áreas técnicas, como engenharia, contabilidade, sistemas de informação, daí em diante. Um ambiente ecúmeno suplica por um padrão mental e teorético igualmente ecúmeno. Essa natureza compósita da cidade harmoniza-se perfeitamente com o ideal político de democracia. “O que queremos” deve assimilar as vozes de todos os atores sociais. A cidade é um dos produtos mais ricos já produzidos por aquilo que denominamos de “civilização”. Nela encontramos recursos, serviços, satisfazemos necessidades das mais diversas qualidades. Para além da oferta de alto teor pragmático, a cidade é esse plexo que nos faz visualizar nosso semelhante. Dividir o mesmo espaço com um número maior de pessoas implica que nos reconheçamos no outro. Alteridade e diversidade são vetores que se complementam. A cidade é mais do que um polo econômico, ela é o palco da nossa vida, o tablado sobre o qual rimos, choramos, sofremos, e, às vezes, até vencemos. Perceber sentido em nossas lutas é luz!
