Ave Maria!
Reconhecer o Magistério da Igreja inclui recepcionar eventuais correções!
Por Cleverson Israel 19 min de leitura
Recentemente, o Vaticano publicou um documento explicando que o uso de verbetes tais como “medianeira” e “corredentora”, não se aplica a Maria, conhecida como Nossa Senhora. De acordo com a publicação, não se trata de uma inovação doutrinária, mas de uma uniformização na terminologia teológica e pastoral. Como congreguei, em diferentes fases da minha vida, na igreja católica e na igreja evangélica, muitos me perguntam “você acredita em Nossa Senhora?”. Não sei bem o que essa pergunta quer dizer, mas faço uma analogia. No primeiro mandato de Donald Trump, a filha dele montou um escritório na Casa Branca, e atendia pessoas que a ela recorriam. A legalidade disso? Nenhuma! E aí, amável leitor, você me pergunta: “Você acredita que as pessoas saíam de lá com as suas demandas resolvidas?” Eu não responderia “sim, acredito”, contudo, daria a mesma resposta de outro modo “não, não duvido!” A própria igreja católica ensina que os santos e Nossa Senhora não fazem milagre. Quem faz milagre é sempre Deus. Se Maria tivesse o poder de fazer milagre, ela mesma converteria água em vinho nas bodas de Caná, sem precisa recorrer Àquele que disse “mulher, que tenho eu a ver contigo?” A fé é um princípio. Você pode acreditar na coisa errada. Mas o princípio vai funcionar da mesma maneira. É assim que o católico sincrético encontra a cura do câncer rezando os hinos da seicho-no-ie. Quando eu era seminarista, não apenas rezávamos a Ave Maria e a Salve Regina em latim, mas, nos dias certos, eu participava da reunião dos legionários. Rezávamos a Catena Legionis. Você nunca ouviu falar da “Legio Mariae”? Quem ingressou no Instituto Dehonista, ao menos dois anos antes que eu, teve uma formação bem melhor que a minha. Principalmente no aspecto linguístico. Esses seminaristas rezavam cada uma das dezenas do terço em um idioma diferente: português, inglês, francês, latim e grego. Voltando à pergunta, se acredito em Nossa Senhora, poderia ponderar: “devo responder a essa pergunta antes ou depois de ouvir a Ave Maria de Franz Schubert?” O amável leitor contestaria “qual a diferença?” Bem, o católico, devoto de Nossa Senhora, sabe que essa hiperdulia está mais próxima do misticismo de Blaise Pascal do que do racionalismo cartesiano duro e frio. Enquanto os antigos judeus cultuavam Javé, os cananeus cultuavam Baal. E a esposa de Baal seria a “Rainha dos céus”. Então, a “Rainha dos céus” foi identificada com Maria, mãe de Cristo. A estratégia da cristianização de ritos pagãos, no início do cristianismo, foi recorrente. Quem fez graduação em teologia sabe que, na disciplina de tipologia bíblica Cristo é o tipo, sendo Adão o antítipo. O mesmo se aplica, por paralelismo, a Maria em relação a Eva. Maria é a nova Eva. Uma estátua de gesso representando Maria não é Maria, é um ícone, uma lembrança, do mesmo modo que a fotografia da sua falecida mãe não é a sua mãe. Foi isso que aquele mirabolante pastor de meados da década de noventa quis ensinar, do modo totalmente errado, que uma estátua é só um boneco, uma moldura. Calha, aqui, o ditado “na mãe não se bate nem com uma flor!” Os excessos de linguagem que os cristãos cometeram, em relação a Maria, espelha essa relação mais afetiva do que racional com a figura feminina, associada à mãe. Freud, o fundador da psicanálise, explica que o menino, em tenra idade, é apaixonado pela mãe, e deseja matar o pai. Ele faz referência ao mito grego de Édipo. Deus é especialista em fazer de coisas simples coisas grandiosas. A moça humilde, da interiorana Belém, sem perspectiva de galgar grande status social, torna-se a mãe do Redentor do mundo. Aliás, no que toca à questão se Maria é mãe de Deus, ou não, afirmo sem medo que se deve dizer que Maria é, sim, mãe de Deus. Se ela for considerada mãe de Jesus homem apenas, estaremos dividindo Jesus Cristo. Cristo é totalmente homem e totalmente Deus, indivisível, além do mais. Do ponto de vista teológico e dogmático, importa mais a identidade de Jesus Cristo do que a questão do status que cabe a Maria. Se, por muito tempo, erroneamente, Maria foi denominada de “medianeira” e “corredentora”, isso espelha mais a realidade de sermos entes imbuídos de sentimento do que uma derrapagem heresíaca. Quem ama o Filho não odeia a mãe. Maria, não obstante não seja uma deusa, com certeza, ocupa o lugar de uma biografia digna de inspiração. É uma referência, um modelo. A devoção mariana é parte constituinte da cultura brasileira. Em O “Auto da Compadecida” o filósofo e escritor paraibano Ariano Suassuna retrata a peregrinação de uma alma condenada ao inferno. Apesar da sentença divina, supostamente irretratável e irrevogável, ele consegue adentrar ao paraíso por comover Maria, a mãe do Redentor, e, na peça teatral, aquela que se compadece pelo condenado. Amplamente reconhecida no meio católico, em vida, fez o contrário: absteve-se de buscar qualquer mérito, disse “sim” a Deus incondicionalmente, e toda sua trajetória foi marcada por recato e serviço. Façamos o mesmo. Entender todas estas coisas trará muita luz a nossas vidas!
