Se o Partido dos Trabalhadores veio a se tornar o que ele é hoje, isto se deve em boa medida aos esforços de lideranças militantes católicas. A Igreja Católica tem capilaridade no condomínio de luxo e na favela. A alma de um pobre vale o mesmo que a alma de um rico, e o voto de um pobre, em tese, vale o mesmo que o voto de um rico. Com presença na periferia, instalando ali capelas, paróquias e casas paroquiais, a Igreja Católica, em tempos pretéritos, também articulou a criação das Comunidades Eclesiais de Base. O Evangelho parece ser a única “teoria” que se mostra capaz de penetrar mentes e corações de pessoas com baixa escolaridade e precária condição de vida. Essa influência espiritual e discursiva na periferia foi direcionada para o engajamento com as pautas de esquerda. As urnas eleitorais dos bairros remotos eram colheita farta para o PT. Ocorre que os políticos norte-americanos, ante a realidade exposta, trataram de enviar missionários para a América Latina, disseminando o protestantismo e, com ele, a ideologia de direita. As CEB’s, em alguma escala, foram substituídas pelas “Células” dos pastores. O cristianismo romano foi substituído por um cristianismo conservador, moralista, e, no entanto, supostamente mais entendível ao cidadão iletrado e carente de senso de pertencimento e identidade. Pela espiritualidade, o periférico passa a ver sua existência no mundo reconhecida. O homo periphericum é despolitizado. Ele vota naquele candidato, ou ideologia, aplaudida pelo pregador no púlpito. O discurso de moralizar a sociedade, inclusive o Estado que a governa, é o carro-chefe da campanha eleitoral que é perene. Em várias favelas o bolsonarismo ficou na casa dos 70%. O PT entende que dignidade é ofertar ao povo condições de existência mínimas: alimento, emprego, auxílio socioassistencial, vestuário, habitação, etc. A direita apregoa que “tudo isso se dá um jeito”, “dizimando, Deus abrirá as janelas dos céus”, ou seja, dignidade é outra coisa. Dignidade é ser membro de uma igreja e cultivar intimidade com Deus. Em São Paulo houve disto: algumas áreas, ditas “nobres”, habitadas pela classe média alta, acusaram vantagem para o PT, ao passo que ele perdeu nos lugares pobres ou muito pobres. O PT foi o partido que mais criou universidades, e os egressos das faculdades, ofertadas nestas instituições, ficaram imbuídos de um sentimento e pensamento de responsabilidade social. Aqui fica clara a complexidade que marca o viés de classe social. O lado sombrio disso, é que o poder executivo, ocupado por um político de pensamento destro, não apenas não se escandaliza, mas apoia abordagens violentas da polícia nas comunidades pobres. Isso significa que o pobre entrega o voto para a direita, mas ela não se dá o trabalho de sequer maquilar sua atuação atécnica e brutal. Religiões e partidos políticos elaboram estratégias para otimizar o potencial da periferia, mas ela continua sendo um recurso de vantagens para seus exploradores. Particularmente, não tenho a menor dúvida de que governos progressistas sejam extraordinariamente melhores para o povo favelado. Entrementes, quando se verifica alto nível de arraigamento pensamental, sobretudo de caráter religioso, associando-se a ele uma concepção política apendicular, estamos travando uma luta de gigantes. O pensamento humano se estrutura em camadas. E as categorias religiosas são as mais basilares, e, portanto, as mais difíceis de serem alteradas. O sobrenatural é mais relevante do que o natural. Mas a oração que Cristo nos ensinou é clara: “assim na terra como no céu”. O céu precisa começar já neste mundo. O “Reino de Deus não é comida e nem bebida”, mas precisamos de água tratada e de alimentação de qualidade. No céu não há impureza alguma, mas, enquanto estivermos aqui, precisaremos de saneamento básico. O céu não é um lugar, mas, enquanto estivermos aqui, precisaremos de moradia e transporte. Deus é a sede de toda a sabedoria, mas, enquanto estivermos aqui, precisaremos de educação. No céu entra apenas quem é santo, mas, enquanto estivermos aqui, precisaremos de segurança. O céu (Éden) é um jardim cultivado que produz alimento por si só, mas, enquanto estivermos aqui, precisaremos de trabalho, ou seja, precisaremos ganhar o pão com o suor de nosso rosto. Cristianismo é esperança. Os partidos e políticos de direita, a despeito disso, nada prometem, e se prometessem não poderiam cumprir. Toda a esperança fica restrita ao mundo espiritual. Reconhece-se que este mundo está perdido, e abre-se mão do engajamento e da militância, antevendo que tudo se deparará com a frustração. De fato, este mundo jamais será perfeito, mas ele pode ser muito melhor do que é. Depende da nossa coragem, da nossa iniciativa, depende de não terceirizarmos nossa consciência política sob a invocação de que “fulano é de Deus”, ao passo que “beltrano não no é”. Vislumbre qual é o lugar na relação, concedido não só à instituição igreja, mas onde você, votante e cidadão, se acha na correlação de forças políticas. Reflexão política é um dever cívico!
