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Argentina: crise cambial clássica

Mais do que antevisto, absolutamente predizível!

Por Cleverson Israel 18 min de leitura

Quando Javier Milei estava eleito, ainda antes de assumir o cargo, escrevi um artigo fazendo votos de que ele não tomasse decisões abruptas, tentando dar uma guinada de cento e oitenta graus num curto espaço de tempo, e que não cometesse erros primários. Tudo em vão. Milei consumou tudo o que eu mais temia para nossos queridos irmãos argentinos. Milei se serviu de um mecanismo de engenharia econômica chamado “tablita”. O objetivo da tablita é promover a estabilidade da moeda. A estabilidade, por sua vez, tenciona desacelerar a taxa de depreciação em relação a outras moedas. É uma questão de câmbio. O raciocínio é simples: se a relação entre duas moedas, sejam elas A e B, é de um para um, assim que A passe a valer apenas o correspondente a B/2, houve uma depreciação de 50%, e quem comprou a moeda que depreciou tem amargo prejuízo. Por isso mesmo, a evitação da depreciação colima impedir ou desestimular o desinvestimento dos recursos financeiros estrangeiros. A medida não apenas deu conta de contornar o efeito indesejado, mas criou um boom de investimentos. É o cenário em que vemos baixa inflação e taxa de juros em queda. Quando os juros caem, aumenta o número de tomadores de empréstimo, os mutuários, o que, em tese, teria o impacto de aumentar o volume de investimento no setor produtivo da economia, seguindo-se de pleno emprego e aumento do consumo, fazendo todo o sistema girar. Na prática, entretanto, tomou corpo a famigerada inflação, numa escala que extrapola o tolerável, uma das características mais inconfundíveis de uma economia em crise. Desse modo, os preços internos começaram a subir mais rapidamente do que o mecanismo antidepreciação poderia compensar. A gestão da taxa de câmbio foi para o espaço. Quem comprou peso argentino tratou de vendê-lo o quanto antes. E essa corrida por vender rapidamente o peso reforçou, em espiral, a desvalorização dessa moeda. A Argentina corre, novamente, o risco de ir ao abismo. O peso se tornou esta mercadoria: quanto mais se vende, menos vale. A depressão econômica passa a ser nítida. Chegou-se a uma crise cambial clássica. Milei foi um novo estadista a cometer erros velhos. O contexto mostra quem é Javier Milei: uma pessoa inexperiente, alguém que não entende nada de gestão pública, o maior novato do pior curso de economia. De país mais rico da América Latina a um país cujo PIB não chega a 1/3 do brasileiro, a Argentina move-se pendularmente entre extrema esquerda e extrema direita, padecendo as duas faces do populismo avesso a uma gestão calcada em princípios técnicos. Pacote de bondades e austeridade radical são dois ícones que retratam a atecnia na seara econômica. Economia requer, acima de tudo, equilíbrio e moderação. Qualquer planejamento minimamente racional passa longe de decisões draconianas e se afasta igualmente da morosidade e da celeridade, uma que peca por ineficiência e, outra, que foge do controle. A polarização política, marcada pela certeza de que um mandato presidencial é curto e, por isso mesmo, é necessário fazer surtir bons efeitos rapidamente, aliada a ingerências externas, de países que exportam ou impõem diretrizes econômicas conflitantes, redunda nessa roleta em que, quem sempre arca com o prejuízo, é a classe trabalhadora. Avista-se pela frente um socorro norte-americano, o que, outrossim, não virá cingido com efeitos duradouros, mas dará um momentâneo respiro. A Argentina não representa grande coisa aos Estados Unidos da América, mas Trump importa-se mais em premiar os que lhe são fiéis, mais, até, do que os interesses legítimos do país de que é o mandatário. Em todas as partes do mundo levantam-se autocratas. Eles fazem tudo ao seu jeito e gosto. É como se as universidades não existissem, as decisões ignoram a existência dos saberes. Tudo é uma questão de fé, ciência é balela. O desconhecimento é econômico e histórico. Os líderes demonstram desconhecer a história dos países que representam. Talvez a bancarrota da tablita sirva como um choque de realidade a Milei. Assim como a prolação de uma sentença judicial não pode comportar, exemplificativamente, o comando “chova-se”, o gestor da pasta econômica deve compreender que se trabalha a partir de um determinado contexto. Nem todo gargalo econômico espelha a falta de uma vontade resoluta da parte de quem exerce a função de regulador. Não tem segredo, tem crescimento econômico e inovação tecnológica, quem não consegue entender isso não é capaz de ajudar ao próprio país. É bem provável, apesar das acusações de corrupção, que os argentinos não consigam depor Milei ainda antes do término do seu mandato. Enquanto este mancebo encena o papel de um estadista, não resta ao povo argentino, no que todos os demais povos do orbe lhe são solidários, premiar a sua existência com a água benta, o suor do rosto. É melhor esperar de si mesmo do que dos políticos. A experiência com Milei, no máximo, poderá ensinar a votar melhor, se é que um dia os povos latino-americanos terão memória, em que pese tão memoráveis e categóricos erros de gestão!