IA e seus efeitos
Não "exclusão recíproca", mas "convivência recíproca"!
Por Cleverson Israel 18 min de leitura
Há quem compreenda a inteligência artificial como uma máquina de destruir profissões. Tecnologias anteriores à inteligência artificial anunciavam a morte de uma série de profissões, o que não veio, no todo, a consumar-se. A impressão gráfica expandiu-se celeremente, mas as pinturas à mão viram seu glamour aumentado. E seu valor também, se, de fato, puderam vir a ser, oportunamente, uma joia, do ponto de vista estético. A produção em série realça o valor do artesanal. Justamente agora, que podemos fazer as máquinas escreverem um livro ao comando de uma tecla, a literatura feita por neurônios, por alguém que pensa, sente e respira, ganha um plus de reconhecimento. A demanda por profissionais no mercado de trabalho de tecnologias cria essas “bolhas”. A ponto de uma empresa contratar uma pessoa simplesmente para que sua concorrente não a contrate. É muito útil dominar a tecnologia de inteligência artificial, mas não procede a informação de que todas as pessoas devem ser profundas conhecedoras desse paradigma tecnológico, presumindo-se que, caso contrário, nem mesmo o mais humilde espaço ocupacional será acessível ao seu desconhecente. Uma linha reta traçada por um software não tem valor, por ser algo corriqueiro. Já uma linha reta feita pelo curso livre de uma mão humana é valiosíssimo, pois a irregularidade acompanha a existência humana. Como disse Karl Marx, esta é a maior diferença entre a melhor abelha e o pior arquiteto: o arquiteto traça o projeto, previamente, no papel, antes de iniciar a edificação da obra no plano concreto. A inteligência artificial engrandece a si mesma ao criar um novo nicho de atividade humana, e reforça o inarredável poder da inteligência natural, na medida em que reconhece, em uma série de tarefas, a insubstituibilidade da pessoa humana. Inteligência artificial e inteligência natural atendem, em muitas das vezes, a propósitos diferentes. Por exemplo, você vai publicar uma obra de sua autoria, digitalmente, numa plataforma de livros, e precisa confeccionar uma capa para a sua pérola literária. Neste caso, você não é um engenheiro gráfico e nem um pintor profissional, mas pode montar a capa do seu trabalho com o uso de inteligência artificial. A inteligência artificial encontra o coroamento de sua existência nos fazeres procedurísticos, ela é instrumental, acima de qualquer outro aspecto. Essa inteligência analítica, entrementes, padece do que não tem, ela é parcamente crítica. E criticidade é uma qualidade fundamental em toda e qualquer espécie de atividade em que um ser humano pode ver-se implicado. Reconheço a valia da inovação. Alerto o amável leitor, apenas, de que é falso o discurso de acordo com o qual tudo o que fizemos, até agora, não serve para nada, ou para pouca coisa serve. O desumano faz sobressair o humano. O digital faz sobressair o analógico. O melhor programa para desenhos não impede que os primeiros riscos de criatividade sejam perpetrados com lápis sobre uma A4. Quem é escritor sabe que, a depender do que se quer escrever, nada melhor do que caneta e papel. Inteligência artificial não é só uma nova tecnologia, é um fenômeno social. E assim como a emergência dos evangélicos não anula tudo o que a Igreja Católica foi e é, igualmente, ao menos por enquanto, continua sendo a inteligência humana a grande maestra que rege os processos sociais, tecnológicos ou não. Não é errado preconizar o que é socialmente emergente, pondero, contudo, que não podemos perder de vista o que consolidado já está. Estamos postos entre estaticidade e dinamismo, entre o que não muda e o que muda. Ficar recluído ao imutável nos torna obsoletos, abraçar modismos redunda na perda de referências. Por conseguinte, a única solução é servir-se, no presente, dos dois cálices do tempo, o passado e o futuro. Na tética do natural e na antitética do artificial, chegaremos à síntese pela qual aportaremos ao mundo buscado, seja ele, um mundo de eficiência e portador de referências simbólicas. Inovação e conservação são aspectos complementares. “Por quê”, “para quê” e “como” são pronomes interrogativos que desvelam aspectos inerentes aos saberes e suas finalidades. A inteligência artificial pavimentou o caminho do “como”, mas por maior que seja seu êxito neste quesito, ela não anula o que foi produzido, seja na seara teológica ou filosófica, em nome do “por quê” e do “para quê”. A criatividade da inteligência artificial não é dela. Nós, humanos, introjetamos a nossa própria criatividade na inteligência artificial e, o que a nossa serva está a fazer, é potencializar algo que é, por definição, tipicamente antrópico. Se tudo o que escrevi neste artigo pode ser resumido num aforismo, sua expressão latina seria assim formulada: “Intelligentia artificialis ancilla est intelligentiae naturalis”.