Projeto-piloto: inquérito no EPROC
Casando novas tecnologias a velhos e sagrados princípios jurídicos!
Por Cleverson Israel 18 min de leitura
Santa Catarina está sendo pioneira, ao adotar um projeto-piloto, consistente em estruturar o inquérito policial já dentro da plataforma do EPROC. Pessoalmente, gosto de inovação e considero o pioneirismo uma tremenda qualidade. Entretanto, no que se refere à medida aqui anunciada, preciso tecer alguns comentários. Um dos argumentos invocados, para a defesa do novo modelo, seria a cadeia de custódia, isto é, o conjunto de procedimentos voltados à guarda de objetos e trabalhos periciais. Com efeito, essa cautela já foi contemplada, em meu ver, pelas últimas inovações na legislação penal pátria. Advoga-se que a novel metodologia traria uma maior seriedade ao inquérito, maior organização. Quero dizer que confio muitíssimo no trabalho do Ministério Público e do Poder Judiciário, mas porém, de igual forma, confio no trabalho da Polícia. Quando se fala em organização, a discussão abarca não só aspectos burocráticos e jurídicos, senão ainda, aspectos gnosiológicos. Por isso mesmo, creio que o inquérito deve remanescer livre de eventuais intromissões judiciais e ministeriais, principalmente na fase antecedente à triangularização processual. A Polícia deve conduzir o inquérito com autonomia e protagonismo, sem eventuais dirigismos das autoridades para as quais, ao fim e ao cabo, o trabalho concluído será remetido. Assim como em certos contextos uma leitura prévia é fundamental, em outros contextos, o fator novidade é determinante. Juiz e promotor devem acolher a remessa sem “pré-conceitos”, sem “pré-juízos”. Aqui entra a teoria da fenomenologia, da autoria de Edmund Husserl. Todo objeto de estudo ou compreensão deve e merece ser recebido na sua pureza ontológica. É preciso fazer a “redução eidética”, ou para usar uma expressão mais entendível, “ir às coisas mesmas”. Juiz e promotor não podem ter sua percepção inquinada pela anterioridade. Dentro de um circuito pelo qual percorre um procedimento, cada etapa deverá ser operacionalizada por um agente diverso dos anteriores e dos posteriores. Não é fragmentação, é organização. Tal como o poder é uno e o Estado é uno, mas organiza-se em três esferas, Executivo, Legislativo e Judiciário, a verdade é uma só, mas edifica-se em duas etapas, uma inquisitorial, e outra servida pelo contraditório. Ministério Público e Poder Judiciário, só podem aferir a corroborabilidade ou incorroborabilidade das peças que integram o inquérito, se tiverem ficado excluídos da investigação administrativa que redundou na sua composição. O sigilo da investigação é um dos requisitos para o êxito de um bom trabalho, e uma prerrogativa dos profissionais que concorrem para elucidar o caso. Embora todos os operadores do direito tenham sua deontologia profissional, o que, em tese, os vincula à ética, cada um labora a partir de um viés próprio, a partir de uma premissa epistemológica. Deixar o caso ao cuidado exclusivo da Delegacia, permite ao dirigente das investigações, exercer uma saudável anarquia metodológica, sem ter de descartar nenhuma linha de investigação, trabalhando com hipóteses das mais diversas naturezas. O condutor do inquérito não pode ficar vinculado ou limitado, desde logo, a certas linhas de investigação. As informações que encartam o inquérito devem, em princípio, ser tão estranhas ao promotor e ao juiz, de modo que elas só passem a fazer algum sentido para estas autoridades, chancelando ou infirmando, uma tese acusatória ou defensiva, do momento em diante em que passarem pelo crivo do contraditório, do conflitivo, da discordância. Nada pode ser recepcionado sem verificação, sem certificação. Quem atesta a lisura e idoneidade de algo, sempre fá-lo em relação a terceiros, jamais a si próprio. A instância certificadora há de ser externa ao conteúdo ideológico certificado, bem como aos seus autores. Não é uma suspeição, não é a inversão da presunção de inocência e idoneidade, é apenas uma questão de organização. A informatização do Poder Judiciário e de toda a burocracia estatal é uma tendência incontroversa e irreversível, mas os axiomas inegociáveis que regem o processo em geral devem ser resguardados, sob pena de se anularem as mais sagradas garantias jurídicas em nome de uma suposta eficiência. Quando um cidadão contrata um advogado para defendê-lo num processo-crime, a ação penal já está em curso. E mesmo que o advogado tenha acompanhado seu cliente no depoimento da Delegacia, não assiste ao causídico nenhum mecanismo pelo qual possa influir decisivamente no curso do andamento do inquérito. A integração dos processos de trabalho complementares não pode, sob hipótese alguma, diluir competências dos agentes estatais e de seus papéis e atribuições. Não quero dizer que seja, necessariamente, uma má ideia colocar o inquérito no EPROC, mas temos que pensar muito bem como isso funcionará, à luz dos valores constitucionais e das seguranças processuais indisponíveis.