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Desqualificação da vítima mulher

Março é o mês que comporta a data (08) em que se celebra o dia internacional da mulher. No dia 07 do corrente mês e ano, o Plenário do Supremo Tribunal Federal começou a julgar a ação ajuizada pela Procuradoria-Geral da República, cujo escopo colima proibir questionamentos de valor moral sobre a vida sexual pregressa […]

Por Israel Minikovsky 16 min de leitura

Março é o mês que comporta a data (08) em que se celebra o dia internacional da mulher. No dia 07 do corrente mês e ano, o Plenário do Supremo Tribunal Federal começou a julgar a ação ajuizada pela Procuradoria-Geral da República, cujo escopo colima proibir questionamentos de valor moral sobre a vida sexual pregressa das mulheres, que figurem como vítimas em ações penais, quando elas estiverem em curso, o que abarca investigação e julgamento. Trata-se de uma nova abordagem nos ditos “crimes sexuais”. Enfim, a sociedade acordou! Quando alguém é vítima de crime contra o patrimônio, o larápio não pode usar o argumento de que a culpa é do assaltado, pois eis que ele, de forma determinante, concorreu para o fato de ter se tornado rico e cheio de haveres, o que despertou a cobiça alheia. Explorar a vida pregressa da vítima de crimes sexuais, para beneficiar o réu, equivale a criar duas categorias de mulheres: as que são merecedoras do amparo judicial do Estado, e as desmoralizadas, que não fazem jus a esta proteção. Já escrevi mil vezes, e reitero: pouco importa quem foi Richard Gardner, sua ética pessoal, se tinha como clientela o público x ou y, qual motivação embalou sua produção teórica, se o que escreveu tem respaldo científico ou não. O fato é que a alienação parental existe, seja qual for sua natureza, gostemos ou não de quem aborda o tema. Compreendo que indivíduos leigos tendam a descartar opiniões de pessoas que, em sua ótica, não são credoras de atenção, por padecerem de falta de prestígio. O Judiciário, contudo, deve pairar acima do senso comum. O assunto a respeito do qual estou escrevendo, neste momento, é de uma centralidade ímpar. Isto porque, estamos imersos na sociedade da informação. Na mídia, na política, em todas as atividades em geral, quando se pretende fazer prevalecer um entendimento, contraditado por uma figura de expressão coletiva, o método empregado é a sistemática desqualificação. A repetição insistente de uma mensagem de teor negativo associada a alguém faz com que ele fique relegado ao limbo do demérito. Assim como, no mito da caverna, relatado em A República de Platão, o evadido do cárcere retorna para abrir os olhos dos seus partilhantes de prisão física e alienação mental, e é morto, algo similar acontece ao portador de luz do século XXI. Ele não é morto. A pena é mais sutil: ele é barbaramente desmoralizado. Trata-se, pois, de uma morte social. A defesa da vítima não é julgada improcedente. É impossibilitada a própria sustentação, oral ou escrita, da defesa. O julgamento de mérito não se vincula à argumentação, a vítima é destituída do direito de argumentar. Cassa-se o direito de voz. A pessoa perde o direito de ter direito. Uma suposta não satisfação de requisito moral destituiria a vítima de suas prerrogativas legais e jurídicas. Existiria, destarte, um direito não escrito, maior do que o direito escrito e superior a ele, a definir quem pode e quem não pode acessar o ordenamento jurídico pátrio. Esquece-se que a moral é subjetiva e não vinculante, razão mesma porque deve existir o direito, que é público e cogente. Confio na Suprema Corte de nossa República. Bem sei que a estratégia de desmoralizar o outro nasce do reconhecimento de que o interlocutor está pleno de razão, faltando ao discordante, fundamentos realistas, éticos e lógicos para fundamentar um contraponto. A desmoralização do outro sinaliza um desespero que, até o dia de hoje, se corporifica em repressão, opressão, tirania, difusão do medo e da inverdade. Procuram-se silenciar as vozes que, na arena do debate política e eticamente correto, não encontram páreo. Não importa quem está articulando o discurso, importa o discurso em si mesmo. Não é racional imputar a outrem a falta de contenção cuja obrigação de autocomportar-se pertence ao domínio próprio do contensor. Não é só uma questão de igualdade de gênero. É uma questão de democracia. Democracia é o regime em que a comunidade, à moda habermasiana, faculta a todos os falantes a possibilidade de externar o que concorre para a consecução dos seus interesses e direitos. Estejamos na esfera da defesa, promoção ou prevenção. Está na hora de dar um basta aos processos de desqualificação dos atores sociais. Sejam eles as mulheres, as minorias, ou os formadores de opinião. Muito cômodo e radicalmente antiético dizer: este não merece ouvidos, esta não merece ouvidos. Luz? Não, melodia!

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