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BEBÊS DE SILICONE E HERÓIS DE VINIL: SINTOMAS DE UM MUNDO SEM AUTORIDADE

Coluna

Por Jornal Liberdade 32 min de leitura

Por Alexandre De Paula Amorim*
Em um mundo onde vínculos afetivos tradicionais parecem cada vez mais enfraquecidos, surgem fenômenos que, à primeira vista, podem parecer aleatórios, mas que revelam muito sobre os dilemas contemporâneos. Paul Scardino, psicólogo de 41 anos que vive na Virgínia, nos Estados Unidos, possui 8.002 bonecos da linha Funko Pop — pequenas figuras colecionáveis que representam personagens da cultura pop. Do outro lado, no Brasil, a influenciadora Elaine Alves, de 37 anos, mantém em sua casa uma coleção de 15 bebês reborn — bonecos hiper-realistas que simulam, com impressionante perfeição, recém-nascidos. O que leva adultos, aparentemente funcionais e socialmente integrados, a estabelecer vínculos tão intensos com objetos? O que esses fenômenos dizem sobre as transformações nas relações humanas, nas instituições familiares e no próprio sentido de pertencimento na sociedade contemporânea? Teriam essas práticas alguma relação com o enfraquecimento dos vínculos, da autoridade e dos referenciais simbólicos que, historicamente, organizavam a vida no Ocidente?
Desde o final dos anos 1950, a cientista social Hannah Arendt já lançava um alerta que, décadas depois, permanece desconfortavelmente atual: o desaparecimento da autoridade no Ocidente moderno. Para Arendt, não se tratava apenas de um mero enfraquecimento de estruturas institucionais, mas de algo mais profundo e, talvez, irreversível. A tal ponto que, com precisão e certo pessimismo, ela sugere que talvez não caiba mais perguntar o que é a autoridade, e sim o que foi a autoridade. Seu diagnóstico é claro: a autoridade, enquanto princípio ordenador da vida coletiva, deixou de ocupar um lugar reconhecível, evidente e funcional nas sociedades ocidentais.
Esse diagnóstico encontra ressonância na análise dos sociólogos Peter Berger e Thomas Luckmann, que apontam para o enfraquecimento das instituições sociais responsáveis por sustentar a credibilidade e a aceitação de determinadas visões de mundo — fenômeno especialmente acentuado nos contextos de modernidade e pluralismo. Nesse cenário, surge uma crise profunda de legitimidade, de sentido e de orientação. As antigas instituições — família, religião, escola e até o próprio Estado — só continuam existindo e operando enquanto forem socialmente legitimadas, ou seja, enquanto fizerem sentido dentro de um universo simbólico minimamente compartilhado.
Hanna Arendt, ao tratar das consequências da crise da autoridade no Ocidente, ressalta que esse colapso tem início na esfera política, mas não se restringe a ela. Rapidamente, ele se alastra para as instâncias pré-políticas, como a família, a educação e as demais formas de convivência social. A cientista social demonstra que a perda dos fundamentos da autoridade legítima não apenas desorganiza o espaço público, mas também compromete profundamente as estruturas que sustentam tanto a vida social quanto o desenvolvimento psíquico e emocional dos indivíduos.
Esse cenário me levou, em 2006, a refletir sobre uma faceta dessa crise ao observar como ela começava a se manifestar de maneira sutil — porém contundente — nas representações culturais. Escrevi, então, um artigo para um blog, no qual analisava a telenovela Páginas da Vida, de Manoel Carlos, como um exemplo dessa transformação simbólica. No folhetim, a figura masculina é reiteradamente retratada como frágil, medíocre e destituída de qualquer traço de autoridade simbólica, enquanto as personagens femininas ocupam os papéis de força, autonomia e centralidade narrativa. A crítica, evidentemente, não estava direcionada ao protagonismo feminino — algo legítimo e necessário —, mas ao esvaziamento dos referenciais simbólicos associados à figura masculina, apresentada não como parceiro, provedor ou orientador, mas como alguém risível, descartável ou irrelevante. Naquele artigo, concluí que esse esvaziamento, que à época parecia circunscrito à figura masculina, rapidamente se expandiria para o tecido social como um todo, atingiria todas as figuras de autoridade, comprometendo tanto a estabilidade emocional dos indivíduos quanto a coesão das estruturas familiares e comunitárias.
Duas décadas depois, assistimos aos desdobramentos dessa crise se intensificarem de forma ainda mais visível, especialmente no âmbito familiar. A figura dos pais, tradicionalmente associada à orientação, à proteção e ao limite, é frequentemente deslegitimada, ridicularizada e apresentada como ultrapassada ou opressiva. Uma evidência concreta desse fenômeno pode ser observada nas redes sociais, onde se multiplicam vídeos que viralizam explorando situações em que pais, mães e avós são alvos de “trolagens” feitas por filhos e netos. Sob o pretexto de serem meras brincadeiras ou “conteúdos de entretenimento”, essas ações, na prática, reforçam um processo de desautorização simbólica das figuras parentais e de desestruturação dos papéis intergeracionais.
Essa ausência de autoridade, assim como o seu questionamento, não prepara esses indivíduos para a liberdade e para a ação responsável no munda da vida, como muitas vezes se acredita. Pelo contrário, compromete a coesão entre gerações, desestabiliza as relações e gera confusão sobre limites, papéis e responsabilidades. O que antes era visto como um processo natural e funcional — no qual o mais velho orientava, educava e transmitia referências de mundo ao mais novo — hoje se rompe sob o peso de uma cultura que sacrifica qualquer hierarquia em nome da autonomia absoluta e da satisfação imediata das demandas e desejos dos indivíduos.
Nesse vácuo deixado pela autoridade, a busca humana por pertencimento, afeto e sentido não desaparece; ela apenas se desloca. Na ausência de vínculos estáveis e de referências sólidas, muitos indivíduos passam a investir afetivamente em objetos, práticas e fenômenos que operam como próteses afetivas. É nesse contexto que surgem, por exemplo, fenômenos como os bebês reborn, os colecionáveis Funko Pop ou as interações emocionais com inteligências artificiais. Esses objetos e experiências simbólicas tentam, de forma precária e sintomática, preencher os espaços de cuidado, afeto e reconhecimento anteriormente garantidos por vínculos humanos e relações afetivas mais estáveis.
O Ocidente, ao que tudo indica, desenvolveu uma verdadeira alergia à noção de autoridade, frequentemente confundindo-a com autoritarismo. No entanto, é crucial compreender que autoridade e autoritarismo são conceitos profundamente distintos. A verdadeira autoridade — aquela que é legítima — não suprime a liberdade, mas, ao contrário, a torna possível dentro de uma ordem estável e reconhecida. A ausência de autoridade não emancipa; apenas deixa um vazio pronto para ser preenchido, seja pela desorientação, seja pela imposição de uma cultura hedônica que prioriza o prazer em detrimento das saúdes das interações afetivas.
Nesse cenário, torna-se evidente que a crise da autoridade não é apenas uma crise das instituições ou do poder formal, mas uma crise existencial, uma crise da própria condição humana contemporânea. Como aponta o sociólogo Anderson Clayton Pires, vivemos o que ele define como “flutuação ôntica das identidades”: um estado coletivo de indefinição, instabilidade e fluidez, no qual os indivíduos escolhem, descartam e ressignificam suas identidades com base, sobretudo, no critério da maximização do prazer e da utilização irrestrita das liberdades individuais. Se, no passado, a autoridade — presente na família, na religião, na tradição — oferecia referenciais fixos que ancoravam a construção da identidade, hoje, sem esse lastro, os indivíduos tornam-se reféns das dinâmicas de mercado, das tendências efêmeras e dos próprios desejos voláteis.
Se desejamos, de fato, reconstruir as condições para que as pessoas reencontrem sentido, segurança, estabilidade e aprendam a fazer uso saudável da liberdade, é imperativo compreender que o colapso da autoridade, longe de significar libertação, abriu espaço para outras formas de controle — mais sutis, mais sofisticadas e, muitas vezes, mais perversas. Não são mais os pais, os mestres ou os líderes que regulam as escolhas, mas os algoritmos, as lógicas de mercado e os dispositivos de consumo que, silenciosamente, moldam desejos, ditam tendências e orientam comportamentos. No lugar da autoridade paterna, surge agora a autoridade invisível das plataformas digitais, dos impulsos de consumo e dos desejos hedonicamente modulados.

*Alexandre De Paula Amorim, antropólogo, teólogo e graduando em psicologia.