A permanência das prerrogativas celulóticas
Somos livres ou não somos?
Por Cleverson Israel 17 min de leitura
Em um tempo marcado pela internet e pela inteligência artificial, a biblioteca, integrada por um acervo físico, ainda exibe mostras de poder resquicial. Ela perdura sendo o palco em que gladiadores, do conhecimento e da política, se enfrentam. Matéria publicada em 1° de junho de 2025, na plataforma do Consultor Jurídico, comunica que um tribunal, dos Estados Unidos da América, proferiu sentença respaldando censura do governo, que expurgou livros indesejados da coleção de uma biblioteca pública. O Tribunal Federal da 5ª Região decidiu que o pente-fino do Executivo, cuja aplicação resultou na exclusão de 17 livros, das prateleiras de uma biblioteca do Condado de Lhano, no Texas, não se caracterizou como violação dos direitos constitucionais de seus frequentadores ou potenciais frequentadores. Por um placar de 10 contra 7, ficou estabelecido que a Constituição Federal ianque não restou malferida pela subtração dos itens excluídos, mesmo ponderando-se tratar-se de um espaço público mantido pelo poder do Estado. Fico feliz que a prolação da decisão não tenha sido unânime, concordando com o voto dos divergentes, inclusive com os argumentos e fundamentos invocados. Um dos magistrados sufragantes pontuou que se deve lutar pelo direito de expressão, mesmo quando aquilo que se expressa não seja o nosso próprio ponto de vista. A decisão que prevaleceu, contradita, choca-se com a história política e constitucional norte-americana. Dito de outra maneira, a decisão não se harmoniza com a visão jurídica consolidada do que vem a ser um governo e sua função, isto é, um garante da propriedade e dos demais direitos dos cidadãos. O Estado existe para evitar o esbulho, e não para ele próprio esbulhar. O Estado é um instrumento de realizabilidade dos sonhos e aspirações. Ele existe para proporcionar a segurança mínima dentro da qual a livre-iniciativa dos cidadãos proporcionará o êxito de todos. O Contrato Social que inaugurou a civilização teve como escopo, dentre outros, a evitação de que um forte presunçoso impusesse sobre seu ladeante o silenciamento do seu pensamento e de sua livre expressão. A missão governamental consiste em estabelecer bibliotecas em pontos estratégicos do território, ofertando o suporte sobre o qual repousará todo tipo de obra, independente do seu conteúdo. Quem delibera acerca do conteúdo ideológico dos livros, são seus autores, e ninguém mais. Evidentemente, nada impede que, no interior de cada biblioteca, haja a seção de livros oficialmente recomendados pelo governo. Contudo, a biblioteca tem o dever de ser o ecúmeno do pensamento. A biblioteca tem de ser eclética, sincrética. Em vez de censurar livros supostamente inadequados, o governo deveria elaborar políticas de incentivo à leitura. Psicólogos, psiquiatras, e outros teóricos, estão percebendo que, mesmo os alunos que egressam das melhores universidades norte-americanas, denotam falta de proficiência em leitura. Esse fenômeno tem impacto direto no desenvolvimento de uma nação. A leitura é a ginástica da mente que a protege do risco do imediatismo. Pela leitura adquirimos repertório, para provas, e para a vida. Se os norte-americanos puderam realizar proezas, que seus pais, na Europa, não perpetraram, isso se deveu em grande parte à ausência de restrições no Novo Mundo. Cercear a liberdade de pensamento é um atraso e um retrocesso não só cultural, mas em todos os sentidos, é um “tiro no pé”. Os melhores espíritos que colonizaram os Estados Unidos da América optaram por esse país em virtude das muitas liberdades ali vigentes. Invertendo a regra do jogo, invertem-se, também, os resultados. Desta feita, neste momento, os “melhores espíritos”, que, no pretérito, puxaram o movimento centrípeto, agora puxarão o movimento centrífugo. Questão de lógica pura e simples. Não estranha que, seja o mesmo governo, a promover censura sobre livros e desidratação financeira das universidades, inclusive e sobretudo em face de Harvard, a pérola ianque de brilho mundial. Por essa e por outras, reputo inconcebível chamar a direita de “conservadora”. Veja-se que, na prática, a implantação dessa política é o inverso da conservação, é a destruição. O conhecimento, esse sim, é conservador. O conhecimento é essa realidade dúbia que, a um só tempo, confirma e infirma, cumpre e transgride, preserva e revoluciona, encanta e assusta. Lançar ao ostracismo o que não agrada ou o que não se compreende, é fazer prova da incompetência para interagir com os elementos banidos. Não é pura e cândida coincidência, que esse despotismo venha a se consubstanciar, precisamente, num momento em que o imperialismo universal do Ocidente está sendo posto em xeque pelo reordenamento da geopolítica. Censura é sintoma de crise e decadência!