Processo legislativo e segurança jurídica
Tudo corre, diria Heráclito!
Por Cleverson Israel 20 min de leitura
Estava eu a meditar sobre por qual razão conheço mais a Bíblia do que a legislação do meu país, sendo eu advogado e teólogo, e percebi que não se tratava apenas do volume de redação, mas principalmente da celeridade como a lei e o próprio direito se transformam. No passado, o sujeito comprava o Código Civil no primeiro ano de faculdade, e acabava usando o mesmo ao longo de toda sua carreira na advocacia. O infeliz do Código ficava colorido, digo, amarelado, pela pátina que vem com o tempo. Se duvidar, na aposentadoria do dono, era vendido para um alfarrábio e, na sequência, adquirido por um estudante pobre que não podia comprar um novo. Eu defendo que haja um calendário programático na mudança da legislação. A Constituição Federal, o Código Civil, o Código de Processo Civil, o Código Penal, o Código de Processo Penal, o Código Tributário, o Código de Trânsito, a Consolidação das Leis do Trabalho, o Código Eleitoral, o Código de Meio Ambiente, e outros diplomas legais que integram o cotidiano do advogado, deveriam ser atualizados a cada vinte anos. E a mudança proposta nunca poderia tramitar por menos de seis anos. Por que seis anos? Porque está sobrevindo uma mudança na legislação eleitoral, impedindo a reeleição, uniformizando a duração do mandato para cinco anos, unificando a data das eleições para todos os cargos eletivos. Então a tramitação transcenderia o prazo do mandato de uma pessoa ou sigla, transcendendo o viés de quem está empoderado no cargo. A legislação tem de ser uma política de Estado e não de governo. Do jeito que está hoje, quando qualquer dispositivo legal a qualquer momento, pode ser alterado, ou suprimido, ou acrescido, vive-se uma instabilidade muito grande. A duração mínima de redação do texto legal seria um incentivo a que os profissionais da área dedicassem maior estudo às normas, conhecendo o direito num nível de maior profundidade e detalhamento. Qual alvanel teria disposição de ânimo em edificar uma casa, vendo que, sequer chegou ao telhado, e, no outro lado, já descem a marreta sobre as paredes que mal acabaram de ser erigidas? Devido ao processo gradual de informatização, que começou antes que eu me formasse e ainda não terminou, o que, somando, passa perto de trinta anos (graduação mais vinte anos transcorridos), o quefazer do advogado tem sido bastante complexo. O software que roda em uma plataforma não serve para outra. O modelo de acesso às plataformas passou por várias alterações, a última delas com a dupla autenticação, a maneira como flui e como o prazo é contado aquando das publicações, etc. Fosse pouca esta mudança, a própria lei, que é a matéria-prima que se presta de conteúdo a toda essa parafernália, sim, ela de igual modo, é uma metamorfose em acelerado processo de mudança. Entendo que o conhecimento do direito não deve ser prerrogativa de juristas. Por que o próprio cidadão não pode conhecer a lei do seu país? Entretanto, como conhecer a essência de algo que é, e, passado um instante, já não é mais? A modernidade líquida de Zygmunt Bauman, como se pode notar, não só abarca a seara jurídica, mas encontra na rapidez de mutação das leis, na celeridade do processo legislativo, o ícone perfeito a ilustrar o que vem a ser o mainstream do nosso tempo. A legislação do Brasil tem mudado de orientação, segundo a ideologia dominante dos políticos do Planalto Central. Nenhuma conquista ou garantia perdura. O resultado de tanta luta e amadurecimento se assemelha a um fragmento sobre as águas, agitado pelo caos das ondas, vindas de qualquer direção, rebentando em qualquer direção. O direito não pode ser refém de maiorias eventuais. A mudança não se reverte em aprimoramento do direito. Pelo contrário, a instabilidade da redação é um desestímulo a um estudo mais sério. O próprio labor dos juristas (não gosto da expressão “operadores jurídicos”) esbarra na dificuldade de alcançar a excelência, num mundo em que o que prevalece é a mais fugaz provisoriedade. O que proponho, portanto, é algo de melhor qualidade e de maior duração. É claro que, às vezes, o legislador, bem-intencionado, projeta criar um beija-flor e sai um morcego. Nem tudo é absolutamente previsível. Nestes casos, poderia ser criado um instituto de controle, vinculado à atividade judicante dos Tribunais, autorizando a sustação do dispositivo que diverge exatamente entre o que visava lograr e o que veio a produzir concretamente. Se a sociedade dos homens deriva daquilo que os pensadores contratualistas chamam de “Pacto Social”, a norma chancela essas transigências recíprocas. Por conseguinte, sendo a norma o documento que traduz uma espécie de consenso, ela deixa de cumprir a função para a qual ela existe, toda vez que, pela transformação célere, antepõe um empecilho de natureza cognitiva ao que, por adesão, ratifica a aquiescência dada no pretérito, e se esforça para adimplir a parte que lhe cabe. Sim, porque, quem é capaz de perfectibilizar uma obrigação cujo teor não se sustenta ao longo de um breve período? É a discussão entre Heráclito e os eleatas: exercer a cidadania atrela-se a um cabedal mínimo de conhecimento. Contudo, se o meu conhecimento entra em obsolescência tão logo me aproprio dele, como posso contornar essa dificuldade? Se a lei nova é melhor do que a antiga, porque ela dura menos (cada vez menos)? Toda mudança legislativa é um avanço? Se queremos avançar, creio eu, precisamos fazer algo bem-feito. Algo que dure. Zelo e primor nos trabalhos legislativos, isto é luz!