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A quem cabe decidir?

Vem a público, postumamente, a obra Em Agosto nos Vemos, da autoria de Gabriel García Márquez (1927-2014). O referido escritor colombiano não ficou satisfeito com a própria escrita. Para quem não sabe, estamos a nos reportar a um nobelizado em literatura, famoso por Cem Anos de Solidão. Mesmo sem anuência do mentor do projeto, a […]

Por Israel Minikovsky 16 min de leitura

Vem a público, postumamente, a obra Em Agosto nos Vemos, da autoria de Gabriel García Márquez (1927-2014). O referido escritor colombiano não ficou satisfeito com a própria escrita. Para quem não sabe, estamos a nos reportar a um nobelizado em literatura, famoso por Cem Anos de Solidão. Mesmo sem anuência do mentor do projeto, a obra vem a lume, em razão de decisão tomada pelos herdeiros do falecido subscritor. Juridicamente, tudo resolvido. Mas, e do ponto de vista moral? É certo contrariar a vontade de quem veio a óbito? Os filhos argumentam que o pai já sinalizava declínio cognitivo e não conseguia ver corretamente o valor do próprio escrito. Eu diria que, muito pior do que isto, seria a situação inversa: destruir um escrito contra a vontade de seu autor, por considerá-lo indigno de tradição. A história nos oferece vários exemplos de crises do criador em relação às suas produções. Franz Kafka teria destruído a maior parte dos seus escritos num acesso de fúria. Na verdade, a obra exibe dependência relativa ao seu idealizador e executor. Principalmente quando a produção se condensa em texto. A obra tem autonomia, tem vida própria. Quando uma peça teatral de autoria de ninguém menos que Karl Marx entrou no mercado editorial brasileiro, muitos denominaram o ensaio de “mirabolante”. Mirabolante por quê? Porque não é este o Marx que estamos habituados a ver? Existe um Marx padrão? Biógrafos e críticos literários estão habituados a estabelecer balizas de acordo com as quais, a partir de dado instante, ou a partir da publicação de dada obra, o autor ou pensador pode ser considerado maduro, e não mais juvenil. Ora, todo ser humano, famoso ou anônimo, exibe diferentes graus se maturidade ao longo de sua existência. Por que as obras juvenis não podem ser valorizadas, dentro do horizonte em que elas se situam? As protoestruturas são as melhores ferramentas para explicar os esquemas desenvoltos. Quem duvida da influência da loucura de Nietzsche sobre seus últimos escritos? Se a juventude é uma antecâmara do bônus criativo, desde que o ilumina pela exibição dos postulados, o momento pós-áureo explicita o que o antecede por desdobramento do que antes só figurava tacitamente. Além de nos debruçarmos sobre as obras-primas de cada autor, é importante uma visão panorâmica que englobe toda a produção do autor, de fio a pavio, para identificar com a melhor clareza possível um padrão de fundo que conduz toda a atividade pensamental. Grandes autores são seres humanos. Os rabiscos explicam os grandes projetos. Quem leu os Grundrisse de Karl Marx compreende como o economista alemão chegou a O Capital. E quem leu Teorias da Mais-Valia compreende para que Marx escreveu O Capital. Toda produção intelectual é um percurso. Pinçar uma obra dessa trajetória e dizer “isto é o todo”, é como extrair um segmento de reta e dizer “eis aqui o todo”. Ilógico e sem sentido. Em dado momento nos damos conta de que só existimos por aquilo que lemos e escrevemos. O resto é conversa. Ler as margens, os rodapés, as entrelinhas, os borrões, é ressignificar o texto, em princípio, bonito e perfeito. Por conseguinte, não estamos afrontando o direito de Gabriel García Márquez. Estamos, gentilmente, solicitando que o nosso direito de leitor seja respeitado. A humanidade facultou-lhe a possibilidade de ter se tornado um grande escritor. Nós, como leitores, vindicamos pelo direito de acessar as referências que deram causa a esse fenômeno literário. Nossa contraprestação consistirá nisso: nunca criticar, nunca deplorar, nunca ridicularizar. Sempre entender e, o mais importante, sempre compreender, o que é um tanto mais. Não se pode perder de vista a intencionalidade de quem assina um escrito. Assim como o autor se coloca no lugar dos seus personagens, o leitor precisa se colocar no lugar do autor. Em Agosto nos Vemos deve ser lido, sim. Entretanto, tudo na vida exige preparo, e com a leitura não é diferente. De bom alvitre que o potencial leitor seja advertido de quem foi o autor, o que ele sentiu, viveu e pensou. Daí vai um bom prefácio, a orelha do livro, ou a contracapa. E aquele que for esperto e se interessar, a um toque da tela abrirá pródigas janelas, informando-lhe das cautelas e recomendações que a aludida leitura inspira. Boa leitura, que o autor descanse em paz!

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