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A escrita no dia de hoje

A escrita, de longe, é a maior das invenções humanas. A única coisa que passa perto da engenhosidade da linguagem escrita é a linguagem da informática, no fundo uma metalinguagem construída para armazenar, replicar e partilhar o conteúdo albergado pela primeira. Nos tempos de inteligência artificial sobreveio à escrita tradicional um impacto sem nada que […]

Por Cleverson Israel 17 min de leitura

A escrita, de longe, é a maior das invenções humanas. A única coisa que passa perto da engenhosidade da linguagem escrita é a linguagem da informática, no fundo uma metalinguagem construída para armazenar, replicar e partilhar o conteúdo albergado pela primeira. Nos tempos de inteligência artificial sobreveio à escrita tradicional um impacto sem nada que se lhe assemelhe. Muitas editoras norte-americanas, só para exemplificar, estão comprando obras de autores por um valor fechado, para treinar seus softwares a partir destes textos. É assim que se educa uma máquina, é assim que se faz dela uma escritora. A concessão desses direitos autorais são definitivos, irretratáveis e irrevogáveis. E o texto poderá ser usado sem se fazer alusão ao seu autor original, poderá ser modificado de todas as maneiras possíveis e imagináveis, remixado, reestruturado, reescrito, num processo sem freios ou limites. Na outra ponta, há pseudoautores que usam inteligência artificial para produzir livros em profusão, e colocam esse material em sítios de venda de livros, constando em epígrafe, seu nome como autor da obra. Os críticos garantem que é possível identificar a gênese da produção textual pelo formato genérico e clichê, bem ao gosto de um cérebro de lítio, digital como só ele. Entretanto, já estão disponíveis softwares que “humanizam” o texto. Pode isso? Um livro composto por quem não respira, ama e sofre, não informa tanto como aqueloutro, antrotípico, pois só o ser humano pode genuinamente fazer experiência, sobretudo em nível existencial (não em nível meramente hipotético ou lógico). Essa avalanche não deve desanimar os escritores consolidados ou aqueles que tencionam sê-lo. Somos insubstituíveis. Ninguém sabe o que pensa até começar a escrever. É na hora de assentar os tijolos dos neurônios que você encara a si mesmo com seriedade. A melhor impressora colorida do mundo não teve o poder de abolir a pintura em telas. O artesanal encontra seu valor no próprio fato de ser artesanal, é na subjetividade do artista que reside o valor da obra. E o mesmo se aplica à escrita. O império da quantidade se dobra à singularidade do que é superlativo na qualidade. Estamos demasiadamente vinculados às tecnologias do nosso tempo. O que proponho, é desafiarmo-nos, não só o que faremos com esse anteparo daqui para frente, senão antes, o que esses meios, que temos agora à nossa disposição, podem revelar a respeito de tudo o que produzimos de conhecimento no passado. A ideia de identificar padrões parece-me bastante interessante. E a inteligência artificial alcança padrões de ordens mais profundas, inacessíveis ao olhar humano primário. Do mesmo modo que a máquina produz texto a partir da intimidade que estabelece com textos de origem humana, igualmente o ser humano pode se apropriar de um texto, em primeira mão feito por IA, conferindo-lhe aspectos seus, idiossincraticamente seus. E aí vem a questão: quem é autor deste texto? Um texto produzido em parceria entre uma máquina e um homem é de integral propriedade autoral do ser humano? Sim, pois uma máquina é incapaz de ser titular de direitos. Só quem inventa uma máquina ou software é prerrogado dos direitos autorais. Ao menos, até o presente momento. Toda essa situação me faz lembrar de Immanuel Kant, para quem o eu transcendental era o fornecedor das formas dentro das quais a experiência era conformada, ao passo que para Johann Fichte o próprio conteúdo da experiência, o mundo objetivo, não passava de uma projeção da mente. O computador nasce como um instrumento, por exemplo, como uma ferramenta com a qual se produz e se edita um texto, para alçar voo e ser, ele mesmo, agora e doravante, o produtor de texto. Um salto qualitativo fantástico, sem dúvida alguma. A escrita é essa linguagem que permite ao homem pensar a si mesmo, e pensar sua relação com o mundo. Seja com o mundo natural e, na presente ocasião, com o mundo produzido por ele mesmo. Uma cadeira é uma marca da inteligência do homem. Mas é uma inteligência passiva. E a inteligência artificial é uma inteligência ativa. A reflexividade da linguagem é o que faz dela algo sem paralelo. Trata-se de um fim assaz elevado, entrementes, inútil, absolutamente inútil. Já o mundo circundante por nós produzido, sempre se atrela à utilidade, é coisa feita para nós. O mundo existe em função da nossa espécie, mas nossa espécie existe para ela mesma, empiricamente falando. Só a perspectiva teológica ensina o contrário, o que não é incompatível com o que aqui foi escrito. A propósito, o próprio Deus resolveu tornar manifesto o não manifesto mediante escrita em tábuas de pedra, declaração, com certeza, que foi feita para durar a eternidade sem fim. Escrita é luz!