Confissões de um ex-sociólogo – parte II: os donos do poder
SBS
Por Jornal Liberdade 25 min de leitura
Walter Marcos Knaesel Birkner
Sociólogo, autor de Sociologia produtiva: BNCC, desenvolvimento e interdisciplinaridade, Editora Arqué, Florianópolis, 2024.
Em artigo intitulado “Confissões de um ex-sociólogo – parte I: os produtores do conhecimento”, setembro/2024, escrevi que a origem de nossos males não está na propriedade privada, na relação opressor x oprimido, nem mesmo na relação capital x trabalho. Afirmei que “a origem está na apropriação legal da propriedade pública, que se transforma em propriedade privada e gera o conflito real, entre o Estado e a Sociedade produtiva”, fato conscientemente ignorado pelos produtores do conhecimento sociológico.
Não falarei sobre o último escândalo de corrupção contra os aposentados, nem de outros tantos. Vou me referir a apropriação imoral, mas legal, de elites sobre o patrimônio público, nossa pior desgraça política. É, também, o fenômeno causal do nosso baixo crescimento, além de erros governamentais e da falta de uma Educação estratégica para a potenciação do desenvolvimento do País. Sobre isso, os produtores do conhecimento sociológico têm grande responsabilidade, inclusive por negligenciarem o assunto que segue.
A apropriação legal da coisa pública, tem nome: é patrimonialismo, conceito weberiano que orientou o jurista Raymundo Faoro (1925-2003) a dissecar o problema nacional em “Os donos do Poder”, e que o servidor público e economista Bruno Carazza atualiza em “O país dos privilégios (volume 1: os novos e velhos donos do poder)”. Já, a ignorância proposital dos produtores do conhecimento tem outro nome: corporativismo, que na versão atual se reduz à cumplicidade nos privilégios, à revelia do interesse público e da verdade.
Carazza mostra um raio-x das elites do funcionalismo — magistrados, membros do Ministério Público, militares, políticos, advogados públicos e altos funcionários dos Três Poderes. Analisando holerites, ele demonstra como esses grupos utilizam mecanismos legais, políticos e justificativas “éticas” para a obtenção de salários acima do teto constitucional. Mostra que o problema não é o tamanho do Estado, que emprega abaixo da média da OCDE. A origem do problema nacional está no patrimonialismo das corporações, em franco prejuízo ao desenvolvimento do País.
Quer ver?
Mesmo com o teto que limita os salários ao vencimento dos ministros do STF), a maioria dos juízes e promotores adquire benefícios como: auxílio-moradia, mesmo já tendo residência na cidade (não é, Doutor Moro?); auxílios-livro-saúde-alimentação, uma vergonheira só, e indenizações retroativas, que aumentam os vencimentos sem contar como “salário” e, ainda, isentos do imposto de renda que nós, os otários, pagamos. Tudo autorizado por normas e decisões internas, isto é, eles mesmos regulam os próprios benefícios.
Outro exemplo: militares da reserva que voltam ao serviço com salário dobrado. É comum que militares da reserva (aposentados) sejam reintegrados a cargos civis no governo, principalmente em funções comissionadas. Nesses casos, acumulam aposentadoria integral, novo salário e gratificações no serviço público. Assim, acumulam salários públicos com base em um passado de serviço ativo — algo que, na prática, contraria o princípio da economicidade e da equidade no setor público. Tão nem aí pra isso.
A lista desses benefícios é infinita. Se puxar uma pena sai uma galinha atrás da outra. E são aves bem alimentadas pelo dinheiro público, escondidas sob camadas de sigilo, normas internas e discursos moralistas. Por trás de cada “auxílio”, “indenização”, “verba de representação” ou esposa num tribunal de contas, há um sistema sofisticado de legislação em causa própria. E quando alguém como Carazza expõe isso, logo surgem reações indignadas, acusações de “ataque às instituições” e “ameaça à democracia”.
Existem mais de duzentas dessas corporações extirpando bilhões de reais em privilégios, ano a ano, perpetuando a desigualdade social e estrangulando o desenvolvimento do País. Carazza promete uma trilogia de sua obra, em que abordará também os privilégios de empresários e dos super-ricos. Repito: o patrimonialismo é a raiz do nosso problema político e o conflito é entre o Estado (tomado pelos patrimonialistas) e a Sociedade produtiva (de empreendedores e trabalhadores).
A pergunta que fica é: por que não vemos esse tipo de análise sobre o patrimonialismo e o corporativismo nos livros de sociologia brasileira?
A resposta é: porque os sociólogos do establishment também são servidores estatais, vinculados às universidades públicas. Autores de artigos, eternos bolsistas de projetos, vendedores de livros, eles reproduzem os conceitos de autores estrangeiros. Fazem penetrar seus pontos de vista pelas salas de aula das graduações e pós-graduações pelo País, chegando até as escolas pelos livros didáticos que professores crédulos tomam como verdades absolutas. Era exatamente isso que, há um século, projetara o filósofo italiano Antonio Gramsci.
A sociologia brasileira se concentra em temas como desigualdade social, movimentos sociais, identidades, raça, gênero e lutas simbólicas, o que é legítimo. Contudo, raríssimos são os que escrevem sobre temas relativos aos interesses estratégicos ao desenvolvimento do País. Nada sobre desenvolvimento regional. Muito menos sobre os privilégios do corporativismo estatal. E esse silêncio seletivo pode ser explicado por laços corporativos, alinhamento ideológico e combate aos “inimigos” da democracia, alguns reais, é verdade, mas não tão poderosos quanto os intocáveis “donos do poder” e seus privilégios corrosivos a ela.
No lugar da crítica ao patrimonialismo e ao corporativismo, o que fazem os produtores do conhecimento sociológico nacional e seus ventríloquos acadêmicos? Importam conceitos, em geral anacrônicos, as vezes rebatizados, como a denominada teoria decolonial, e impingem a desgastada narrativa da luta entre opressores e oprimidos em termos identitários ou antiocidentais, como fosse a quintessência do pensamento crítico. Os fundadores da Sociologia ficariam envergonhados.
A crítica estrutural ao corporativismo é evitada porque implicaria confrontar a própria posição corporativista de quem escreve a crítica. No lugar disso vai o desgastado discurso moralizante contra o “mercado” ou contra as instituições ocidentais opressoras, encobrindo as causas profundas da desigualdade social que simulam combater. E tudo em nome do tal “pensamento crítico” que tantos pedagogos apregoam sem a noção de que, em respeito à dialética, a legitimidade dessa expressão está em criticar o próprio “pensamento crítico”, anacrônico e acrítico que, por razões corporativistas, assim se tornou.
Nesse sentido, os produtores do conhecimento sociológico são os novos “intelectuais orgânicos” do status quo, assunto do meu próximo artigo nesta Coluna.